domingo, 23 de outubro de 2011

MAIS UMA ANEDOTA CRUZEIRENSE - O DIREITO DE PERMANER CALADO

Fonte da imagem: Internet
Descendente de nordestino, de família de seringueiros, conseguiu, com muito suor, juntar uma boa porção de terra que hoje é ameaçada pelo crescimento desordenado da outrora Cruzeiro do Sul, agora Cidadania e Trabalho.

Por tempos viveu sossegado, isolado em seus domínios. Mas a periferia urbana avançara e uma invasão comunitária, que depois viraria bairro, dele se aproximou.

Suas terras, agora tem vizinhança, incômodos vizinhos. Pomares  têm uma grande atração por moleques. Seus tranquilos pés de planta (vide dicionário do juruaês), encontravam-se  agora infestados de meninos a devorar sem seu consentimento de dono, os frutos.

Reclamara aos pais. Não houve jeito, o ataque continuou. Cansou de espreitar, cansou de flagrar e correr atrás dos serelepes e lépidos. Não tinha mais idade e tempo para aquilo.

Uma providência deveria ser tomada. Aprendeu durante a vida que o direito à propriedade estava acima de tudo. Assim era nos seringais.

Matar ninguém não iria. Suculentas frutas não valeria uma estadia eterna no mar de fogo. Mas precisava de uma artimanha, civilizadamente cristã, para se proteger das invasões.

Depois de maquinar luas em claro, conseguiu, enfim, chegar a uma saída.

Pois bem. Pegou várias peças em madeira, encheu-as de grossos pregos, varando-as e deixando as pontas do metal para cima. Pôs cuidadosamente as peças embaixo de cada exemplar do pomar e camuflou-as com capim seco.

Dias depois, indo ao pomar encontrou um moleque pendurado na goiabeira. Gritou. O moleque pula e cai com os pés em cima da armadilha. Como era de se esperar ficou estrepado nos pregos, sem poder correr.

Ciente de está fazendo o melhor para o futuro da sociedade arranca o menino da armadilha e leva-o arrastado pelas orelhas à presença dos pais. Entrega o pirralho aos cuidados da família, não antes de proferir todo tipo de ensinamentos morais que aprendeu com seus antepassados e seus líderes religiosos.

Como os tempos já eram outros foi denunciado à justiça. Recebeu chamado do doutor da lei.

Vestiu sua calça surrada que ainda dava para o gasto de pelo menos mais dois invernos _ gastar dinheiro com luxo pra quê? Não calçou botas ou fino sapato. Calçou sim suas sandálias de dedo, de borracha nacional.

Na audiência foi questionado se era o dono da terra e o autor do ato faltoso. Respondeu que sim. Foi o suficiente. O doutor da lei, homem culto, jovem, formado nos melhores colégios particulares e na melhor faculdade pública do país, nascido e educado em terras mais humanas e desenvolvidas, começou, colericamente, a exortação:

_ O senhor não se envergonha? Como pode ser assim tão irresponsável? Viu o que fizeste a esta inocente criança de apenas 17 anos e 11 meses? Como podes ser tão inconsequente? Isto, meu senhor, não é ato de um homem civilizado! O senhor é por acaso um sacripanta? És um obtuso das ideias, um estulto, um néscio?

E assim, por mais de uma hora, ouviu, em alto som, toneladas de adjetivações das quais não compreendeu um grama. No entanto, seu instinto, apurado na vida, desconfiou estar a receber uma tremenda reprimenda que nem ao seu saudoso genitor permitiria. "donde se viu, passá por isso dispois de véi?"

Por fim, o homem da lei perguntou se teria algo a dizer em sua defesa. No início ficou mudo, engasgado de tanta raiva engolida. Porém como houvera insistência decidiu falar:

_ Dotô , eu nem abri minha boca direito aqui e o sinhô, que é um homi educado, de fineza, intiligente, istudado, de boa famía, que istudou fora, que é uma otoridade... disse tudo isso comigo, imagine o que num vai pensá de mim dispois que  eu, que sou um burro véio de carga, um grosso, um gnorante, um anafabeto que nunca istudou , só veveu na mata trabaiando no bruto... se sou tudo isso que o sinhô disse... se eu fô falá o que acho do sinhô dipois de uma esculhambação dessa ,o que num vai  pensá de mim ?

E diante da autoridade estupefata, completou:

_ Então é mió calá...



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