Dediquei uma parte de minha vida trabalhando nos Correios. Já aqui em Cruzeiro do Sul, vez ou outra, por falta de efetivo suficiente, tive que auxiliar no serviço de distribuição de correspondências.
Confesso que não achava nada agradável ser carteiro em Cruzeiro do Sul. O relevo da cidade não ajuda. As ruas parecem verdadeiras montanhas-russas, sem a diversão do famoso brinquedo, claro. Quase escarpadas ladeiras a ser vencidas por bicicletas cargueiras lotadas de bolsas abarrotadas de cartas e cobranças, já que à época trabalhava-se em dobro para atingir a "meta de eficiência" cobrada pelo governo FHC - maldito presidente ! Ajam coxas, panturrilhas e joelhos ! Haja resistência !
Não bastassem as ladeiras , tinha ainda a complicação das escadarias para se chegar às residências. De um lado das ruas subia-se, do outro descia-se. Era um inferno de degraus e um emaranhado de casas sem numeração. O pandemônio de endereços incompletos exigia do carteiro a condição de advinha para se achar o destinatário.
Trago várias lembranças para contar daquele laboroso espaço de tempo. Especialmente, me vem à retina uma delas.
Eram quase doze horas de uma manhã de sol causticante. Estava no meio uma ladeira da avenida 17 de novembro, com o quente fardamento ensopado de suor, empurrando a bicicleta cargueira e já quase no fim de meu intinerário diário.
Cansado, " pisando na língua ", vinha absorto no pensar, xingando de descaso até a terceira geração maternal antecedente da família do general Thaumaturgo de Azevedo, por ter ele fundado uma cidade em cima de várias pequenas colinas, com tanto lugares planos na amazônia:
" _ Será que aquele pôrra, não sabia que um dia aqui teria carteiro ?"
Na tentativa de arrefecer minha raiva, procurava pensar no quão gratificante era profissão , aquela visão romântica de levar uma carta com mensagem de alguém amado que partiu para outra localidade e que mataria a saudade de quem aqui ficou, etc. Até tentava assobiar aquela canção [...] Quando o carteiro chegou/ E o meu nome gritou / Com uma carta na mão [...] na voz de Maria Bethânia.
Esse era o espírito, a alma que me levava a cumprir o meu dever de funcionário dos correios nacional, público e eficiente. Carregava com orgulho no peito e na manga da camiseta amarela o simbolo maior da nação, a bandeira nacional.
Venci a ladeira, enfim. Com o abudante suor que escorria da testa fazendo os olhos arderem, respirando com dificuldade cheguei ao destino final. Pronto, era só entregar a carta, receber um " muito obrigado, carteiro amigo " e responder " por nada, só fiz o meu trabalho".
Bati palmas uma , duas , três vezes. Em Cruzeiro do Sul não se tinha a cultura de ter caixa de coleta de correspondências. Por isso a qualquer custo tinha que ser entregue nas mãos do destinatário ou responsável. Muitos exigiam que entrassemos nos quintais:
" Deixa de ser preguiçoso, venha deixar aqui nas minhas mãos , você ganha para isso ".
Já não disseram que cruzeirense é enjoado ?
Na quarta batida de palmas, finalmente sai da casa um menino. Me olha desinteressado. Uma voz lá de dentro pergunta:
_ Quem é, meu filho ?
E o menino, com toda a sinceridade que só uma criança possui:
_ Né niguém não, mamãe, é só o carteiro.
Desiludido, só levei mais 05 aninhos para pedir minha exoneração. Deixara de ser romântico para ser pragmático, precisava de um melhor vencimento.
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Ps: Dia 25 de janeiro foi o dia do carteiro, uma profissão heróica e de risco, pouco valorizada pecuniariamente diante de sua enorme importância histórica e econômica para este país. Uma vergonha e covardia iniciadas no governo canalha de FHC e negligênciadas pelo governo Lula, de quem se esperava uma redenção para a categoria por supor-se que um dia soube o que foi suar a camisa trabalhando. Uma decepção, infelizmente.
Se Euclides da Cunha tivesse visto um carteiro em ação em Cruzeiro do Sul, a empurrar sua bicicleta subindo a ladeira ao meio-dia, teria dito " é, antes de tudo, um forte ".
Parabéns pelo texto. Ainda bem que voltou a escrever. A blogosfera cruzeirense perde muito sem o "Senhor Jurubeba", kkkk.
ResponderExcluirUm abraço, Jairo Nolasco