Ontem, em mais um dia de chuva no fim de tarde neste generoso verão chuvoso_ para nós, amazônidas, o inverno_ vi um fato que não é fato para os jornais e uma cena que jamais seria filme.
Ilhado em determinado local, por ser motociclista não-motoqueiro a se proteger da água pluvial densa que despencava daquele céu plúmbeo carregado, ainda que por trás rajado e suspenso no ar como diria o Raulzito, eu pensava sobre a vida.
E pensava como sempre, filtrando sob a ótica de minha filosofia barata de blogueiro fracassado. Mais um ano novo e o mundo continuaria deveras uma merda, uma caca, a despeito do que pregam e fingem pensar os homens que nos dão as luzes natalinas ou aqueles que nos vendem "qualidade" material em coisas tão supérfluas para viver.
Absorto estava nesses dissabores de um homem de mente obtusa, de pensamento trivial baseado no tal senso comum que os guardiões da verdade absoluta tentam defenestrar das bancas acadêmicas, quando avistei aquele figura que se aproximava.
Vinha descalço, trajando apenas uma bermuda, daquelas de skatistas que chegam quase ao tornozelo _ duvido se um dia ele subira em cima de um skate. Caminhava embaixo da chuva torrencial, pisando no centro da rua esburacada, de buracos recheados de lama e água que as vozes oficiais dizem que não.
Não pisava. Bailava no asfalto, mesmo sem patins.
Não pisava. Bailava no asfalto, mesmo sem patins.
Eu o reconheci de imediato. É um costumaz cobrador de imposto paralelo que fica ali pela porta da única agência do Banco do Brasil nesta progressista cidadela. Por vez ou outra costumo lhe pagar o tributo que se fosse na Roma imperialista seria de César. Coisa de qualquer R$ 0,50.
Dane-se o politicamente correto. Para ele pode ser tudo. Para mim, mesmo um pobre assalariado, não fará falta assim. Ademais, antes a ele do que ao tesouro nacional para depois ser divido no bolo e quase sempre rapinado pela pessoa errada em local e tempo certos nesta era de democracia e república.
Mas desta feita não se dirigiu a mim. Não pediu uma " moeda para inteirar um pão que tô com fome, sêo zé". Na verdade ignorou-me sumariamente. Seguiu seu caminho sendo abundantemente banhado pela mãe natureza. Pela primeira vez eu estava o vendo limpo, mostrando sua verdadeira tez, livre do encardido por dias e dias acumulado por falta de um simples asseio.
Não era negro e nem pardo. Era branco, jovem ainda. Se fosse urso, seria polar, estaria protegido por lei contra a extinção da espécie. Como exemplar da espécie Sapiens, branco - e pior - do gênero masculino, não será albergado por sistema de cotas ou estatuto da minoria vulnerável. Sendo também pobre, está desamparado no país da constituição cidadã onde todos são iguais perante a lei.
Alheio a isso, ele caminhava livre e feliz. Carregava embaixo do braço um frasco de álcool 98º GLS de tampa azul ainda pela metade ocupado.
A chuva era forte, fazia barulho nos telhados das casas próximas. Percebi que mexia os lábios. Estava cantando. Curioso, esforcei a audição. Qual seria a música de felicidade, daquele momento-só-dele , que cantarolava baixinho ?
Não consegui entender, mas minha mente, ocupada pela vã filosofia, jurou que cantava "Redemption Song" do Pearl Jam ( na verdade a música original é de Bob Marley) :
[...] Won't you help to sing/ These songs of freedom ? / 'Cause all I ever had: / Redemption song/ Cause all I ever had : / Redemption song/ This song of freedom [...]
E eu aqui, ilhado na chuva, pagando imposto para as ruas continuarem esburacadas, desiludido com a velhacaria politiqueira, preocupado com família, estudo, trabalho e futuro, querendo levar uma vida normal até que a morte - angústia de quem vive - nos separe.
Tampa azul, Pearl Jam. Liberdade sem redenção...
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